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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Dona Anna do Ceue


Anna Ely Pires Taborda trabalhou durante mais de 40 anos na biblioteca do Centro dos Estudantes Universitários de Engenharia (Ceue) da UFRGS. Mas nem mesmo sua aposentadoria, em 2004, afastou os estudantes desta senhora que guarda o vigor da menina do Alegrete que veio morar em Porto Alegre em 1939, com os pais, dois irmãos e uma irmã. Em seu endereço atual, um ensolarado apartamento na Borges de Medeiros, quase em frente à praça Daltro Filho, ela recebe a visita de ex-alunos como Rafael e Thiana, que hoje vivem em Manaus: “Ele veio me visitar assim que me mudei”, comenta, lembrando a última vez que Rafael viajou ao Sul.

Tanto carinho não é de estranhar, pois Thiana não é a única que ainda recorda as tardes de “conversas tão boas, tomando chá e comendo balinhas”, promovidas por dona Anna na biblioteca. “(...) Lembramos com muita saudade daqueles tempos do Ceue. Foi uma época tão boa! Sentimos muito a falta da senhora, que com o seu jeito especial fez com que nossos anos na UFRGS fossem melhores.” As cartas da estudante são tão valiosas como as placas de homenagem que Anna recebeu do Ceue e da Universidade pelos longos anos de “dedicação, amizade e paciência”. Tudo guardado em uma caixa especial trazida para a sala para ilustrar a entrevista.

Conversa que começou às dez horas da manhã de uma quarta-feira, adiando a leitura dos jornais diários, deixados num cantinho do sofá para ler mais tarde. Ao lado, o livro Uma verdade inconveniente de Al Gore também espera, mas este para ser emprestado para uma segunda amiga. É que dona Anna adora ler e continua estimulando a leitura daqueles que vivem ao seu redor. Ela tem todo um esquema de trocas de periódicos muito bem montado com outras moradoras de seu edifício: as suas assinaturas do Jornal do Comércio e da Zero Hora até o final do dia passam por suas mãos e por mais duas vizinhas, e de uma outra recebe as revistas semanais Veja e Caras. “Tem dias que não dá para ler tudo”, comenta. Isso sem falar na pasta com recortes sublinhados, todos com destino certo: “Leio uma coisa interessante e guardo para um e outro”.

Quando foi nomeada na UFRGS em 1962, já havia atuado por um ano como contratada pela diretoria do Centro de Estudantes, acumulando a função de bibliotecária e atendente da lojinha do Ceue. “Fiquei de bolicheira, como eu digo.” Quanto aos estudos, diz que não fez faculdade, mas foi aluna dos colégios Paula Soares, Americano e Júlio de Castilhos, onde cursou apenas o primeiro ano do científico: “Não entendia aquelas coisas de Química e de Física,” brinca. Antes de 1962, trabalhou por nove anos na Pan Air do Brasil, onde conheceu o futuro marido, Armando, com quem casou em 1961, falecido há 13 anos. Eles moraram durante 30 anos na avenida Independência, perto do Colégio Rosário. Não tiveram filhos, mas Anna se diz avó “postiça” do filho de seu enteado, que mora com a família no Rio de Janeiro, para onde ela e o marido viajavam todos os anos nas férias ou de visita.

Em 1991, assinou sua primeira aposentadoria, mas reassumiu como funcionária do Ceue pouco tempo depois, a pedido dos estudantes, trabalhando por mais 15 anos. Agora, “como o Lula me paga para eu ficar em casa”, ocupa parte do seu dia, que começa lá pelas 5h – quando toma chimarrão lendo os jornais na sacada –, assessorando a síndica nas lidas com o condomínio. E como tudo a volta de dona Anna tem vestígios da sua organização, característica possivelmente herdada dos anos à frente de uma biblioteca, tanto nos elevadores quanto ao lado do telefone no corredor de seu apartamento existem lembretes. Os elevadores são velhos, não podem exceder na carga, o que justifica o alerta. Há anos, a filha de uma amiga “aluga” um quarto em seu apartamento, o que explica a anotação de alguns acordos ao lado do telefone.

Só que, em nenhum momento, tais recados denotam a imposição de uma pessoa ranzinza. É difícil acreditar que alguém possa ficar triste ao lado de dona Anna, que aos 80 anos de idade não tem problemas de saúde, nem fica lamentando a vida. Encarrega-se de fazer novas cópias de chaves para vizinhos, providencia bem-feitorias no prédio, prevendo possíveis problemas futuros, como os corrimões que mandou colocar nas áreas de circulação para tantas pessoas idosas que moram no prédio. Precauções que adota consigo: evita sair à noite ou em dias de chuva “para não pegar resfriado”.

“Não sou uma pessoa depressiva, graças a Deus.” Disposição que compartilha com a vizinha Araci, nome de sua mãe, motivo que uniu ainda mais as duas, até porque Ana era o nome da madrinha de Araci. A amizade começou no dia em que foi conhecer o apartamento que estava à venda. As duas se encontraram no corredor e, depois das apresentações costumeiras, quando perceberam a coincidência dos nomes, previram o que se daria no futuro. E não erraram. “Até às 19h15min assisto TV com ela, depois volto para casa, tomo meu lanche, assisto o Jornal Nacional e vou dormir.” Boa noite, Anna. Boa noite, Araci. (Talvez leiam juntas a matéria.)

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